*Em novembro (1989), na edição nº 58, o jornal “A Voz da Vitória” premiou os vitorienses entrevistando o padre Renato da Cunha Cavalcanti. Entrevista inteligente com respostas sensatas e objetivas, que refletem a experiência e sabedoria do profeta que é o nosso pároco. Merece e deve ser lida. Sim, lida, mas lida meditando-a e com senso crítico. A entrevista foi conduzida pelo jornalista João de Albuquerque Álvares.
“Dados biográficos: padre Renato da Cunha Cavalcanti, brasileiro, timbaubense, 60 anos, é o vigário da Paróquia de Santo Antão, há 26 anos. É considerado um administrador emérito pelos vitorienses que conhecem o seu trabalho eficaz e dinâmico. Portador de uma forte personalidade, o padre Renato é também admirado e respeitado até por membros e adeptos de outras religiões. Seu trabalho pastoral é competente e edificante, pautado por coerência, segurança e equilíbrio, virtudes que o tornam credor de inquestionável confiança da sociedade vitoriense. Aparentando em certos momentos ser uma pessoa intransigente e ditatorial, sua verdadeira face de homem simples, filantropo, sincero, trabalhador e determinado, devolve-lhe o merecido reconhecimento dos paroquianos, por quem é admirado e estimado.
– Cursou as primeiras letras em Itabaiana, Timbaúba e Campina Grande.
– Curso de Humanidades (Ginásio e 2º Grau), curso de Filosofia e curso de Teologia, num total de 12 anos, no seminário de Olinda.
– Um ano de Teologia no “Instituto Católico de Paris”.
– Licenciatura plena de Filosofia na Universidade Católica de Pernambuco. Licenciatura curta de Letras na Faculdade da Vitória de Santo Antão.
– Filho de Pedro da Cunha Cavalcanti e Judith da Cunha Cavalcanti.
– Ordenado Padre em Paris (França) aos 17-04-1955.
– Chegou à Vitória de Santo Antão e assumiu a Paróquia, no dia 31-03-1963.
Juventude – insegurança e dúvidas.
A resposta está contida na questão proposta. Ao enfrentar o desconhecido, o jovem tem de estar inseguro e cheio de dúvidas. Como porém o tempo não para, ele tem de se preparar para a vida, vivendo. A compreensão, respeito, paciência e, sobretudo o testemunho positivo da sociedade em geral, e de modo especial, de certos setores mais influentes da sociedade como a Família, a Escola, a Igreja, são de grande valia para o jovem na superação dessas dúvidas e insegurança, neste período rico, bonito e alegre, porém às vezes desconfortável, da vida.
– Emancipação da mulher
Enquanto esta expressão significa libertar a mulher de uma tutela inexplicável exercida por parte do homem sobre ela, e ainda mais, enquanto se trata de reconhecer teórica e praticamente que a mulher é tão capaz quanto o homem de ter uma participação construtiva na sociedade, no plano intelectual, administrativo, social e etc; entendendo assim, julgo que a emancipação da mulher é tarefa a ser realizada por toda sociedade, e não apenas pela mulher. Deixo, porém uma pergunta: A mulher se emancipa ou se escraviza ainda mais, quando vende o seu corpo nu ou semi-nu, com o objetivo único de facilitar a comercialização de objetos?
– O clero discrimina a mulher negando-lhe atuação ou exercício de função relevante na igreja O verbo “discriminar” está na moda. Está sendo até usado indiscriminadamente. Às vezes discriminamos porque é necessário discriminar: por exemplo, devemos discriminar o certo do errado, o bem do mal; e neste caso temos o dever moral de discriminar. Se, no entanto, quando discriminamos, negamos a certas pessoas o exercício de seus legítimos direitos, por quaisquer que sejam os motivos, como sejam: raça, cor, religião, política etc., esta discriminação é inaceitável. A igreja não discrimina a mulher, pois, não é verdade que a Igreja negue à mulher o exercício de funções relevantes. Há mulheres que participam de conselhos administrativos, conselhos pastorais, diocesanos e paroquiais, sínodos (que reúnem representantes de toda a Igreja Universal); são tantas as mulheres que participam ativamente da liturgia, como ministros extraordinários da Eucaristia, como leitores, dirigentes do canto etc. todas estas não são funções relevantes? A única coisa que é negada à mulher é receber o Sacramento da Ordem e, consequentemente exercer algumas funções que estão ligadas a este Sacramento. Trata-se de uma tradição que a Igreja mantém fundamentada no fato de Jesus quando chamou seus apóstolos para o exercício do Sacerdócio Ministerial, escolheu apenas homens, mesmo havendo na época muitas mulheres que o acompanhavam nas suas andanças; e depois que Jesus voltou ao Pai, a Igreja, desde os primeiros tempos, continuou este costume, mesmo contando sempre com valiosa e indispensável contribuição de muitas mulheres as suas atividades pastorais. A mesma coisa ainda acontece em nossos dias. Aliás, a Igreja sempre considerou e respeitou muito a mulher. Foi até o Cristianismo quem iniciou o trabalho de emancipação da mulher. Qualquer pessoa de boa fé, e bem informada, reconhece este fato.
– a lenta evolução da participação dos leigos nas atribuições dos sacerdotes
É natural que a evolução, para chegar a bom termo, se faça lentamente. Se algumas etapas importantes são inexplicavelmente canceladas, a meta final pode ser prejudicada.
Leigos e Sacerdotes têm atribuições diferentes. Isso faz parte de toda sociedade bem organizada. As tarefas são divididas e distribuídas, e os objetivos daquela sociedade serão tanto mais eficientemente atingidos quanto mais fielmente cada um cumprir com o seu dever, sem que ninguém invada as atribuições de seus companheiros de tarefa. Um conselho e sugestão: se você quiser se informar melhor sobre este assunto e o imediatamente anterior, assuntos que são de grande importância para o cristão, leia o último documento da igreja a respeito: “Vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo”. (Exportação apostólica de João Paulo II).
– Analise as divergências entre conservadores e progressistas da igreja católica
Os dois termos “conservadores” e “progressistas” não são muito felizes quando querem indicar grupos antagônicos na Igreja. As pessoas vivem e agem de acordo com seu temperamento, sua cultura, sua educação, e até suas conveniências. Diante de cada situação nova da vida nós assumimos comportamentos diferentes, umas vezes conservadores, outras vezes progressistas. Ninguém é totalmente conservador, ninguém é totalmente progressista. Certas divergências que existem entre os cristãos são sinal de que a Igreja é viva e participa da vida. Ela está sempre buscando algo mais. Devemos aceitar tudo aquilo que a humanidade construiu de bom no passado, portanto as boas tradições, sem no entanto estagnar, como quem diz: estou realizando, mas buscando sempre e aproveitando tudo o que é de bom o presente e o futuro nos vão proporcionando.
Do diálogo construtivo e fraterno entre os chamados progressistas e conservadores nasce a melhor postura e o caminhar mais correto do povo de Deus. É bom lembrar o antigo adágio latino que diz: “In médio virtus” – a virtude está no meio, ou seja, igualmente afastada dos extremos. Um lembrete para reflexão: às vezes parar um pouco e olhar para trás é necessário, é até um gesto de sabedoria. Como também nem sempre um passo à frente é progresso; às vezes nos leva ao abismo.
– Televisão no Brasil
Poucas vezes eu me sento diante de um aparelho de televisão; minhas noites são ocupadas com atividades pastorais, quase sempre fora de casa, e durante o dia todos nós temos outras atividades a fazer, de maneira que sou pessoa pouco indicada para fazer um julgamento sobre televisão no Brasil. No entanto, pelo pouco que vejo, sobretudo o tele-jornal, acho bom o nível técnico. Talvez prestasse um serviço melhor se apresentasse menos novelas e mais programas educativos.
– Seriam os discos voadores veículos utilizados por seres inteligentes de outros planetas?
Não acredito neles. Penso que são produto de ficção e ou alucinação.
– Melhores momentos da vida
Eu sempre estive de bem com a vida e ela tem sido muito generosa comigo. Gosto muito da vida, e sobretudo da minha vida. Para satisfazer a indagação em questão, teria de escrever minha autobiografia, pois minha vida é pontilhada de ótimos momentos.
– Maus momentos da vida
Será que eles existem? Penso que não. Nada tenho a lamentar da vida, nem mesmo o acidente automobilístico, pois, sem ele, não teria experimentado o calor humano, a amizade e solidariedade de tantas pessoas extraordinárias, às quais mais uma vez agradeço sensibilizado.
– Casamento: instituição em crise
Fala-se muito em crise do casamento. Mas será que isso é novidade? Casamento é vida e onde há vida há crise. Acontece com as instituições o que acontece aos homens: às vezes navegam em mares calmos, outras vezes em mares bravios. É possível que o casamento viva um de seus momentos de crise, porém a crise bem administrada e humildemente superada proporciona vida nova à instituição antiga. Não há dúvida de que o casamento, como instituição e como vivência, sofra atualmente ataque brutal, sobretudo por parte da televisão apoiada inocentemente por certa camada da sociedade. Digo “sobretudo por parte da televisão” porque ela entra em nossas casas disfarçadamente, para ensinar os nossos jovens e crianças, a mentira com sabor de verdade e nestas circunstancias, ela, a televisão, é o verdadeiro “lobo com pele de ovelha”.
– Sua competência administrativa fez da paróquia de Santo Antão um modelo de organização que é admirado dentro e fora do município. Como consegue equilibrar o orçamento financeiro da paróquia, com poucos recursos, já que os católicos não pagm dízimos e apenas contribuem espontaneamente para a sustentação financeira da freguesia?
Muito obrigado pelo elogio. Quanto a indagação da segunda parte, trata-se de “segredo profissional”. Quem sabe? Pode ser que a resposta ao item imediatamente anterior possa ajudar a esclarecer o segredo do equilíbrio em questão.
– As decisões dos vigários são democráticas ou individualistas?
O espírito democrático aliado às características e dotes pessoais de cada vigário podem produzir boas decisões, e talvez bem melhores do que as “decisões democráticas” de nossa “sofrida democracia”. No entanto, continuo a acreditar e fazer profissão de fé na “verdadeira democracia”.
– O município vitoriense tem uma população estimada em cento e trinta mil habitantes, com esmagadora predominância de católicos. Como fica a assistência religiosa e espiritual para tantos fiéis, com as duas paróquias contando, cada uma, com apenas 1 padre?
Eis um dos muitos desafios para a igreja, povo de Deus. Sabemos que a Igreja não são apenas os sacerdotes e bispos. A igreja povo de Deus é constituída por ministros ordenados (diáconos, presbíteros e bispos), religiosos e leigos. E a tarefa missionária, ou seja, o dever de evangelizar a todos, é missão de todo o Povo de Deus, de toda a Igreja.
A ação do sacerdote, numa paróquia ou numa comunidade, se estende e se multiplica através da ação dos leigos.
Para aqueles que governam, ou estão à frente de grandes tarefas, é importante trabalhar, e mais importante ainda, fazer com que outros trabalhem, organizar e distribuir tarefas. Distribuídas as tarefas, se todos cumprirem com o seu dever, a missão será cumprida, mesmo parecendo gigantesca e quase irrealizável.
– Brasil: Constituição de 1988. Vai melhorar a vida dos brasileiros?
É bom e até mesmo indispensável ter uma boa constituição. Porém, mais importante do que uma boa constituição é ter bons, dedicados e honestos administradores.
A nova constituição é uma esperança a mais. Seria bom também que a dedicação e o espírito público de nossos administradores e legisladores nos dessem maiores razões para aumentar essa esperança. Se há uma crise, esta não é culpa da constituição; a culpa é dos homens, dos administradores etc. e nossa, também. Se houver mais responsabilidade e honestidade por parte de todos, governantes e governados, a vida dos brasileiros vai melhorar.
– 2001 – início do terceiro milênio, como caminhará a humanidade até lá?
As novas descobertas científicas vão continuar facilitar a vida dos homens, porém, o egoísmo e a ambição desses mesmos homens vão continuar a limitar o número dos que aproveitam esse progresso. Somente o conhecimento e a vivência dos ensinamentos de Jesus poderão mudar a vida dos homens, a nossa vida. Quando isso acontecer, seremos todos felizes, vivendo como irmãos. Seria tão bom que fizéssemos essa caminhada até o ano de 2000!
– Espaço livre – fale sobre o que deixou de ser perguntado
Não me foi perguntado, mas eu vou dizer:
Já faz quase 27 anos que vivo em Vitória. Nestes anos, tenho aprendido a admirar os vitorienses: os de nascimento e os de coração. Parece que todo mundo aqui é da mesma família: todos se conhecem, todos se defendem, todos se ajudam. As exceções ficam por conta das limitações humanas que nos acompanham sempre ao longo da vida. O convívio com os vitorienses tem me enriquecido bastante e contribuído sobremaneira para que eu esteja sempre de bem com a vida; também por isso eu sou muito grato a todos.
(HISTÓRIA DA VITÓRIA DE SANTO ANTÃO, 1983 A 2010. PÁG 130 à 138)