ABESTALHADO COM A VIDA – por Sosígenes Bittencourt

Desde menino que eu sou abestalhado com a vida. A vida é uma loucura. Vivemos como se não fôssemos apodrecer, solitariamente, um dia. Nutrimos a esperança de sair voando para o céu, em forma de alma, alvos como um capucho de nuvem, para sentar num jardim paradisíaco, onde não há agrotóxico e todas as frutas são doces.

Mas, por que tanto espanto em pensar que tudo isso pode ser verdade? Walt Disney sonhou fazendo um desenho caminhar e o fez. Sobretudo, para deixarem de chamá-lo de doido. Aliás, o próprio animador de desenho resumiu sua façanha: If you can dream it, you can do it – Se você pode sonhar, você pode realizar.

Por que aquilo que pensamos não pode ser verdade? Por que nossas ilusões não podem se concretizar um dia? Afinal, o homem já sonhou voando e inventou o avião. Não satisfeito, porque queria ser um pássaro, montou uma asa delta e foi dar uma voltinha, atirou-se no precipício, com cara de pássaro, fazendo munganga de pássaro.

Melhor estar iludido do que desiludido. A desilusão é a maior dor. A desilusão é uma depressão, como acocorar-se ante o Portal do Inferno de Dante: Lasciate ogni speranza, voi che entrate – Perdei toda esperança, vós que entrais.

Sosígenes Bittencourt

RECEITA PARA ENCANTAR MÃE SOLTEIRA – por Sosígenes Bittencourt.

Um dia, eu conheci uma morena amamentando uma menininha. Era uma moça pobre, com cara de indígena, os olhos amendoados, o cabelo derramando-se em volta do rosto, rolando pelo pescoço. Era todinha uma índia, os seios sacolejando por trás da blusa, desprovidos de corpete. Eu só me lembrava dos irmãos Villas-Boas, dos acessos de malária, cara pintada, milho e mandioca.

Todavia, para conquistar mãe solteira, é preciso um certo talento, um certo jeito e muita paciência. Eu via aquela menininha que parecia uma indiazinha, nos braços daquela morena avermelhada, sugando-lhe as tetas com tanta ternura; ela, calada, olhando para dentro de si mesma. Ficava meio enxerido, querendo participar daquilo que não me pertencia.

Foi, foi, foi, um dia, devagarinho, movido pela ajuda, todo cuidadoso, peguei a menininha nos braços. A menininha pousou o cocãozinho no meu ombro, toda vazia da figura paterna, deu um suspiro e adormeceu. Juro que senti vontade de chorar, mas a alegria conteve minha lamúria. Fiquei todo invocado, parecendo que havia recebido um presente. Os olhos da moça brilharam, as escleróticas se umedeceram.
Aí, eu fui pegando gosto, botando a menininha no meu coração. Quando você bota filho de mãe solteira no coração, ela começa a se aproximar do seu coração. De sorte que, toda vez que a moça via a menininha aconchegada, começava a sentir frio. Estava criada a melhor receita para conquistar mãe solteira.

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Renovação e Esperança – por Sosígenes Bittencourt.

Que, em tempo de Renovação e Esperança,
o passado sirva de exemplo na construção do Futuro e na preservação da .
Façamos um bom Presente para não termos tristes recordações.
Relembremos as vezes que vencemos as adversidades.
Acostumados a cair é que aprendemos a nos levantar.
O que é bom para depressão é Organização.
Criador do Universo nunca nos despreza
quando nos infunde a capacidade de discernir
entre o Bem e o Mal.

Sosígenes Bittencourt

LOUCO DA BOA LOUCURA – por Sosígenes Bittencourt.

Eu sempre tive essa mania de escrever. Até que, em 1987, eu passei a escrever para ser lido. Ou seja, antes, eu escrevia para não esquecer ou não ter que me lembrar do que estava pensando. Na realidade, a gente escreve quando valoriza o que pensa, quando não quer esquecer o pensamento. Mas, depois, eu achei que não tinha graça eu escrever só para mim e resolvi escrever para todo mundo. Ninguém deve negar sua arte ou suas verdades, suas descobertas, até para submetê-las à análise dos semelhantes. Talvez, seja uma imprudência escrever para ser lido, mas talvez seja uma imprudência morrer abraçado com suas verdades sem discuti-las. E, aí, quando começaram a me chamar de maluco, fiquei entusiasmado. Era sinal de que eu estava vencendo o medo de ser sincero e despertando curiosidade sobre minhas maluquices. Ninguém é imune a maluquices. Ora, eu estava enlouquecendo da boa loucura. Há quem colecione galo de briga e ninguém diz nada. Ademais, ninguém consegue se destacar sem uma pitada de loucura. O que dizia o filósofo Aristóteles, trezentos anos antes de Cristo?

Sosígenes Bittencourt

A GLAMOUROSA CHUPETA DO SATANÁS.

No tempo de eu menino, ninguém sabia que cigarro entupia os alvéolos pulmonares, provocava enfisema, dava câncer. Quanto mais, menino.

Papai comprava cigarro americano importado e colocava no guarda-roupa. Tinha Half and Half, Marlboro e Pall Mall. O cheiro era de chocolate, e papai dava belas baforadas depois do café, sentado numa cadeira de sofá pé de palito, à la Hamphfrei Bogart. Às vezes, ouvindo o jogo do Sport Club do Recife, abraçado com um rádio transistorizado. Também desconhecia que cigarro servia para aplacar ansiedade, era ansiolítico. E eu ficava ansioso para experimentar sem jamais ter inalado.

Um dia, eu entrei no seu quarto, e a porta do guarda-roupa estava entreaberta. O cheiro de chocolate incensava o cubículo. E lá estavam as carteiras de cigarro empilhadas. Meticulosamente, pé ante pé, puxei um canudinho do maço e corri para o quintal. Esfreguei um fósforo na lateral da caixa e acendi um Malboro. A cabeça ficou zonza, o mamoeiro balançou, e o vento esfriou sob o sol escaldante da tarde.

Pronto! Estava fundado um vício que durou 40 anos e me brindou com uma falta de ar, o que me fez definitivamente largar a glamourosa Chupeta do Satanás.

Enfisematoso abraço!

Sosígenes Bittencourt

Fragmentos de mim mesmo.

Sou um amante da vida nos seus múltiplos aspectos. Aproveito tudo. A tragédia, por exemplo, tem me servido muito na criação de minha arte.

Descobri, através do meu semelhante, que vim ao mundo para fazer graça e viver das graças.

O riso é excepcionalmente benéfico à saúde.

Gosto tanto de mulher que não saberia dizer o quanto nem o que viria em segundo lugar.

Não me casei ainda por causa das outras, mas não me considero imune ao matrimônio.

Não sou gastador nem pirangueiro, mas considero que mais vale um prazer do que cem contos de réis.

Sobre Deus, penso como Camões: “O que é Deus ninguém entende, que a tanto o pensamento humano não se estende.”

Sosígenes Bittencourt

Introjeção de norma e castigo – por Sosígenes Bittencourt.

Antigamente, a juíza da infância e da adolescência era a mãe. Isso foi no tempo da palmatória. Escreveu, não leu, o pau comeu. Embora ninguém questionasse o valor da chinelada na educação doméstica, não me lembro de criança castigada com injeção letal.

A criança precisa entender que está sendo castigada porque descumpriu normas que precisam ser introjetadas, regras que precisam ser aprendidas, não por irritação, autoritarismo ou abuso da força paterna. Ninguém bate em criança por amor à criança, bate com raiva da criança. Ninguém mata um estuprador por amor ao estuprado, mas por ódio do estuprador.

Introjetamos normas com medo do castigo, mas isso não credita a todo castigo a melhor forma de promover a introjeção da norma.

A criança precisa entender o motivo pelo qual está sendo castigada, não pode concluir que está sendo castigada pelo ódio dos pais, pelo capricho dos pais, pela força maior dos pais. Isto seria como treiná-las para odiar.

Sosígenes Bittencourt

REMÉDIO E VENENO – por Sosígenes Bittencourt.

Há quem beba só no final de semana e pense que não é alcoólico. Ele começa no Sábado e entra em casa no Domingo à noite, carregado numa maca.

Contudo, vale salientar, a embriaguez não é culpa do vinho, é culpa do homem. Droga é fármaco. O álcool é um deles. A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem. O dependente exagera na dosagem e paga um tributo oneroso pelo exagero, arcando com os efeitos.

O filósofo Sêneca dizia: Procura a satisfação de ver morrerem os teus vícios antes de ti.

E o poeta romano Horácio advertia: É prejudicial o prazer, comparado ao preço da dor.

Sosígenes Bittencourt

Auri Sacra Fames – Sosígenes Bittencourt.

Acho que vou leiloar meus pertences para acudir esse pessoal. Coitado do Menino Jesus. Estranhamente, não são os ATEUS que arengam por causa de Jesus, são os CRISTÃOS. Odeiam, se maltratam, vertem lágrimas de crocodilo e usam o Santo Nome em vão.

Esses falsos profetas enganam os BURROS para colecionar CABEÇAS DE GADO, são uns ANIMAIS. É a sagrada fome pelo ouro, de que falava o poeta Virgílio. E tudo acontece nas barbas da Justiça.

Os presídios estão apinhados de trombadinhas, aviãozinhos de tráfico, negrinho do cabelo pixaim, mulher da difícil vida fácil, por que esses negociadores da fé estão palitando os dentes?

Santo Tomás de Aquino dizia: Pois é muito mais grave corromper a fé, da qual vem a vida da alma, que falsificar dinheiro, pelo qual a vida temporal é sustentada.

Sosígenes Bittencourt

Ética e Caráter – Sosígenes Bittencourt.

Difícil é driblar CARÁTER. O caráter está na pele, na respiração. Você só conhece uma pessoa, convivendo com ela. Você pensa para ter ÉTICA, mas não pensa para ter CARÁTER.

Os latinos diziam: IN VINO VERITAS (no vinho, a verdade). Algo como dizer: Queres saber quem é o homem, vai buscá-lo no fundo de uma garrafa de vinho. – É quando a Ética adormece, se descuida, e o Caráter começa a transpirar.

O homem deve ter uma postura filosófica diante da vida, ou seja, PENSAR no que PENSA. O homem só tem emoções porque pensa. Então, ter BONS pensamentos é ter BOAS emoções. A emoção segue aquilo que você pensa. Logo, só quem pode mexer na PERCEPÇÃO que você tem da vida, do seu corpo, é você mesmo. E, para tanto, é preciso ser AMIGO da SABEDORIA. O bom é ser SOFOS, ser sábio. O dono da montanha é rico, mas quem usufrui da montanha é o SÁBIO, que vê e sente aquilo que o comum dos mortais não consegue perceber ou sentir, e isto é que é ser RICO.

Sosígenes Bittencourt

Fragmentos – Sosígenes Bittencourt.

*Não há nada mais eterno do que o passado, pela impossibilidade de modificá-lo.
*Vejo poesia em tudo. Por isso, ando pela calçada.
*Somos excelência em ciência e tecnologia, mas pobres em sabedoria.
*Há amores acidentais e amizades essenciais.
*Ando à procura de um “talvez”, e talvez você seja o meu “onde”.
*Não há maior distração do que ser humano.
*Ninguém pensa nem age para ter paixão, mas pensa e age porque tem paixão.
*Vivo estudando. Quando não tenho o que fazer, estudo.
*Leio desde quando não sabia ler e escrevo desde quando não sabia escrever.
*Todo homem crê no limite de sua fé e descrê no limite de sua descrença.
*Forte não é quem bate, mas quem defende.
*Rico não é quem tem, mas quem ajuda.
*Inteligente não é quem humilha, mas quem ensina.

Sosígenes Bittencourt

Não ria se puder – por Sosígenes Bittencourt.

Um dia de sábado, amanheci com um cidadão de Glória do Goitá em minha porta me perguntando se eu era Pai de Santo. Abismado com o paradoxo, pois nem cara de Pai de Santo eu tenho, resolvi interpelá-lo:  Embora não seja Pai de Santo, mas por questão de curiosidade, o senhor poderia me dizer o que o incomoda tanto?

– É que eu arrumei uma mulher casada lá em Glória do Goitá, e o marido dela está me procurando para me matar. Eu queria que o senhor me ajudasse e me dissesse quanto era a consulta.

– Bem… eu vou lhe dar um conselho de pai e não vou lhe cobrar absolutamente nada. Arrume as malas, largue a mulher e dane-se de Glória do Goitá.

Sosígenes Bittencourt

Mulher vulgar – por Sosígenes Bittencourt.

A diferença entre uma mulher VULGAR e uma INVULGAR está no procedimento. A vulgar é pornográfica, a invulgar é erótica. A PORNOGRAFIA é o nu sem mistério, o nu sem arte, o EROTISMO é a sugestão do nu, onde há espaço para a imaginação.

Mulher VULGAR é sempre tagarela, é a indiscreta, aquela que sai fuxicando suas intimidades. Essa é descartabilíssima e perigosa. Antigamente, a mulher se dava mais ao respeito, enterrava os pés e negava tudo. Hoje, lavou o rosto, já está se sujando com a própria língua. Aliás, o conselho serve para ambos os gêneros: O sexo ficou para a cama, e os segredos do amor, para o coração.

Indecente abraço!

Sosígenes Bittencourt

Homem carente – por Sosígenes Bittencourt.

Assim como a mulher, o homem sempre sofreu carência. Carência não tem gênero. O que existe é preconceito. Por exemplo: a mulher não pode manifestar sua SEXUALIDADE nem sua AGRESSIVIDADE. É considerada safada e masculinizada. O homem não pode manifestar sua AFETIVIDADE nem o seu MEDO. Quando um homem manifesta o MEDO de perder a mulher por quem sente AFETO é considerado CARENTE. Isto é preconceito.
Bom salientar que homem carente merece mulher AMOROSA, BONDOSA, MISERICORDIOSA, não mulher ODIOSA, aproveitadora da fragilidade humana. Depois, mulher CARINHOSA + homem CARENTE só pode resultar em CARINHO. E troca de carinhos e carícias é uma delícia. Todos ganham.

Um homem carente, solitário, abandona-se, afoga-se na bebida. Sente vergonha de revelar seu sofrimento. A mulher, em geral, bota pra fora, grita, procura um médico, chora, fica esperneando. Porque mulher não é condenada por revelar sofrimento.

Em resumo, há sempre alguém carente e solitário à procura de apoio e carinho. O ideal seria que se encontrassem. Não sei se campanha, talvez, funcionasse. Centro de Encontro de Pessoas Carentes.

Sosígenes Bittencourt

Pé de Pitanga – por Sosígenes Bittencourt

Debruçado sobre o muro aqui de casa, um pé de pitanga vigia a rua. Mulheres que vêm de bairros distantes passam, de braços dados, a admirá-lo.

– Êi, Maria, vê quanta pitanga!

As pitangas, suspensas no ar, parecem se balançar de vaidade, olhando para lá e para cá.

– Menina, e tem de toda cor!

Alguns pinguços também já as admiraram, lambendo os beiços, ébrios de desejo.

– Isso dá um tira-gosto arretado!

Sinto-me contente com tamanha dádiva. A eugenia uniflora, que dá em quintais, empertigada no canto do muro do meu terraço. Sei que a drupa globosa é comum na Mata Atlântica brasileira e naIlha da Madeira em Portugal. Ao sol vesperal, parecem mimos caídos do céu, esses novelos decálcio coloridos d’aquém e d’além mar.

Bem sei que alguns a futucam com um pau, no intuito de fazer um ponche, chupar minhas pitangas. Nem por isso vou “chorar as pitangas”, me aperrear, ficar me lamuriando. Aliás, lembra-me a célebre reflexão do revolucionário francês Babeuf: Os frutos da terra pertencem a todos, e a terra, a ninguém.

Sou um homem feliz, porque, em meio à struggle for life (luta pela vida), tenho tempo de parar para observar minhas pitangas e produzir esta crônica.

Mimoso abraço!

Sosígenes Bittencourt

Justiça à margem da Lei – por Sosígenes Bittencourt.

A Justiça é cega, mas os homens é que se negam a enxergar o Direito. Marcos Mariano da Silva, perante Themis, a deusa de olhos vendados, não tinha cor, credo nem classe social. Mas, os seus algozes o viam como ex-mecânico, homem sem posses, riqueza, desprovido de beleza. Marcos Mariano não tinha nada que chamasse a atenção dos causídicos, nada que os seduzisse, por isso foi vilipendiado. Porque não há desprezo maior do que você negar justiça a quem merece.

Marcos Mariano não passou 19 anos preso, como inocente, sem que a Justiça o soubesse. Porém, a Justiça só se faz pela ação do homem. E onde estava esse homem? Quem são esses pérfidos indiferentes? A Lei, enquanto teoria, é apenas uma flauta, alguém terá de soprá-la.

Embora cego, Marcos Mariano sabia a verdade, enxergava dentro, mas era um Tirésias esquecido. Como confiar naqueles que lhe negaram a liberdade? Como acreditar na Justiça nas mãos de quem a nega? Porque Marcos Mariano da Silva não foi tratado como marginal, a Justiça foi que agiu à margem da Lei. E de que adianta, agora, indenizá-lo, se ele está morto? Cegou dentro do presídio e morreu sem enxergar a liberdade. Morreu sem poder ver as noites e os dias. Como imaginar que o ex-mecânico Marcos Mariano foi torturado até a morte por aqueles que tinham o dever de lhe conceder o direito de viver?

Vilipendiado abraço!

Sosígenes Bittencourt