Detrás de minha casa

Detrás de minha casa, de um alpendre, eu vejo os telhados das casas vizinhas, a rua lá embaixo, a serra lá longe, o céu escampo.

À tarde, quando é verão, as nuvens relembram minha infância. Eu ficava vendo as nuvens formar carneirinhos, às vezes um monstro. Um dia, eu vi um bule direitinho.

Detrás de minha casa, eu ouço o palavreado de minha cidade, o cheiro de pão francês, ruído de caminhão, latido de cachorro. Agora, deu pra passar helicóptero, besourando, com aquela cauda de gafanhoto. Quando é amarelo e preto, eu só penso que é a polícia catando vendedor de marijuana.

Havia uma fábrica que passava a vida funcionando. Faziam biscoito. O cheiro de morango, de chocolate e frutas cítricas era tão forte que a gente acordava, de madrugada, para beber água de quartinha. Hoje, só escombros, as lagartixas se despencam dos muros, frágeis de inanição.

Detrás de minha casa, vemos homens que jogam dominó para esquecer o tempo, passar as horas. Como se fosse perigoso pensar na vida. Quem bota pra pensar na vida, geralmente pensa na morte. Melhor ser um gato, um peixe, um passarinho.

Sosígenes Bittencourt

CRISTO E MALUF

História engraçada conta o jornalista pernambucano Aldo Paes Barreto, em seu livro Causos & Casos, que acontecera em Nova Jerusalém.

Durante um espetáculo, em plena Campanha pela Presidência, Paulo Maluf está na plateia. No palco, braços abertos, Pilatos indaga a multidão diante do Palácio do representante romano:

– Povo de Jerusalém, não quero ser culpado pelo sangue de um inocente. Vós julgueis. O poder romano permite que eu solte um dos acusados. Solto Cristo ou Barrabás?
No meio da plateia, uma voz soou mais alto:

– Solta os dois e prende Maluf.

Sosígenes Bittencourt

Felicidade

Um cidadão, aqui na rua, amanheceu botando Roberto Carlos pra tocar. Imagine a música que você quiser do repertório do Rei e o palco do evento. O dia amanhecendo, o céu nublado e os passarinhos alvoroçados e cantantes, saltitando sobre o telhado dos escombros da fábrica de bolacha. E imagine que ainda tem gente esperando a felicidade chegar.

Sosígenes Bittencourt

Pé de Pitanga

Debruçado sobre o muro aqui de casa, um pé de pitanga vigia a rua. Mulheres que vêm de bairros distantes passam, de braços dados, a admirá-lo.

– Êi, Maria, vê quanta pitanga!

As pitangas, suspensas no ar, parecem se balançar de vaidade, olhando para lá e para cá.

– Menina, e tem de toda cor!

Alguns pinguços também já as admiraram, lambendo os beiços, ébrios de desejo.

– Isso dá um tira-gosto arretado!

Sinto-me contente com tamanha dádiva. A eugenia uniflora, que dá em quintais, empertigada no canto do muro do meu terraço. Sei que a drupa globosa é comum na Mata Atlântica brasileira e naIlha da Madeira em Portugal. Ao sol vesperal, parecem mimos caídos do céu, esses novelos decálcio coloridos d’aquém e d’além mar.

Bem sei que alguns a futucam com um pau, no intuito de fazer um ponche, chupar minhas pitangas. Nem por isso vou “chorar as pitangas”, me aperrear, ficar me lamuriando. Aliás, lembra-me a célebre reflexão do revolucionário francês Babeuf: Os frutos da terra pertencem a todos, e a terra, a ninguém.

Sou um homem feliz, porque, em meio à struggle for life (luta pela vida), tenho tempo de parar para observar minhas pitangas e produzir esta crônica.

Mimoso abraço!

Sosígenes Bittencourt

SEDE AO POTE

Eu sei que chocolate faz bem à saúde, sei que contém polifenóis, flavonóides;
que combate os radicais livres, é antioxidante, previne inflamações;
que escavaca as coronárias, descolando-lhes a borra, desentupindo a hidráulica sanguínea;
que enxágua nosso sangue, deixando-o limpinho, fininho, cheirosinho;
sei que auxilia a peristalse intestinal, fazendo a tripa colear que nem uma cobra; 
sei até que funciona como antidepressivo, libera feniletilamina, ocitocina, serotonina e dopamina, promovendo alegria e calmaria;
eu sei de tudo da chocolatria, da chocofilia, mas não precisa ir com tanta SEDE AO POTE.

Sosígenes Bittencourt

A vida e o artista

A vida é um espetáculo sem revisão, é acontecendo. É o gerúndio que nos oferece a sensação da vida presente, a sensação de duração: nascendo, vivendo, morrendo.

Estar vivo é como não ter mais jeito, o jeito que tem é viver.

O artista é um sonhador que tem a coragem de fuxicar os seus sonhos. Sobretudo, uma técnica de revelar os seus sonhos. Às vezes, com uma caneta, com um pincel, uma requinta, um cinzel.

Quando a beleza passa na frente do poeta, o resultado é poesia.

Sosígenes Bittencourt

A BEIJOCA DAS MENINAS NA TELEVISÃO

A arte virou um álibi ou uma alternativa para a exibição daquilo que seria eticamente condenável. Aquilo que não pode ser mostrado às crianças no meio da rua, na televisão pode, porque é arte cênica, e a proibição seria uma medida ditatorial contra a liberdade de expressão. Vejam que babilônia.

Bata de porta em porta e você verá a reprovação em massa à beijoca protagonizada pelas meninas Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela da Globo. Mande-as trocarem saliva numa estação de metrô ou dentro de um shopping e elas não terão coragem. Temeriam por uma pedrada na cabeça. Mas, na televisão, o máximo que pode acontecer é uma porrada no aparelho eletrônico.

O escritor norte-americano Roger Shattuck (1923-2005) discute, em sua obra CONHECIMENTO PROIBIDO, as fronteiras éticas da arte e da ciência. E aconselha: “Evitar que a pornografia chegue às crianças pela TV não é limitar a liberdade de expressão. É cuidar da saúde pública e da educação, que também são valores fundamentais.

Sosígenes Bittencourt

SOLIDÃO A DOIS

Sentado na calçada, um homem fuma

um cigarro ao lado se sua mulher.

Sentado na calçada, o homem não

se sente atraído por sua mulher.

Sentada na calçada, a mulher inala

as baforadas de cigarro do homem

que não quer.

Mas, logo próximo, um cão triste

parece entender o vale de solidão

que há entre o homem e a mulher.

Sosígenes Bittencourt

COISAS DE PROFESSOR

*Eu leio desde quando não sabia ler
e escrevo desde quando não sabia escrever.
*Escola não é lugar de distração. Escola é lugar de concentração.
*Aprender a Ler e Namorar foram as maiores alegrias que tive na vida.
*Eu sempre imagino que a Língua Portuguesa é uma espécie de mulher.
*Se fôssemos loucos por ciência como somos por bola,
teríamos mais juízo.
*Quando descobri que minha mãe era minha mãe
já sabia que ela era professora.
*Aprendi a andar tarde, mas quando comecei a falar,
fui convidado a ficar calado.
*O controle remoto é recente,
mas a sabedoria é remota.
*O meu dom é divino, mas o estudo é sagrado.
*Eu me sinto responsável pelo que digo,
não me sinto responsável pelo que entendem.

Sosígenes Bittencourt

Não ria se puder

De tanto me dedicar aos dramas humanos, me esqueci de apreciar os bichos. Talvez, tivesse me decepcionado menos.

Um dia, meu menino me perguntou:
– Painho, o que é que aqueles porcos estão fazendo no meio da rua?
– Porcaria, meu filho.
– E por que aqueles cavalos estão soltos?
– Porque os seus donos são burros.

Aliás, quando chamamos um cidadão de BURRO, estamos desconsiderando o quadrúpede. Eu nunca vi um burro fumando nem tomando cachaça.

Sosígenes Bittencourt

RONDÓ PARA A VEREANÇA

(Campanha para Vereador – 1988 Vitória de Santo Antão-PE)

Eu sou da cerveja e Giba do Bolo
Eu gosto de maxixe e Biuzinho do Chuchu
Eu sou do xarope e Mané do Comprimido
Eu vinha da Compesa e Dário da Celpe
Eu sou professor e Geraldo Enfermeiro
Eu venho de casa e Braz do Trânsito
Eu prefiro cavalo e Jair Carneiro
Eu não sou santo nem Ronaldo de Deus
Eu não brigo com branco nem discuto com Preto
Eu não ando às cegas, mas Petrúcio Pisca-Pisca
Eu durmo em paz enquanto Nicolau Vigia
Eu cheguei da confusão e Galego do Rolo
Eu nunca vi lobisomem, mas Papa-Figo da Mangueira
Eu não almoço rato sadio nem Neco Rato Podre
Eu conheço meleca e Zé Catota
Eu sou flexível e Mestre das Molas
Eu sou das sereias e João das Cobras
Eu sou de mamãe e Dr. Severino de Conceição Parteira

Sosígenes Bittencourt

FRAGMENTOS (TÚNEL DO TEMPO)

Há 27 anos – Março de 1988
*De vírus em vírus, aids do Brasil! De aids em aids, vírus o Brasil!
*Em tempo de Controle da Natalidade, disse o espermatozóide ao óvulo: – Amigos, amigos, fecundação à parte!
*O aposentado anda com medo de que o aposentem do recebimento.
*Parte do funcionalismo ameaça não funcionar,
que será o funcio(não)lismo.
*O pastor negro Jesse Jackson é o mais novo herdeiro espiritual de Martin Luther King. Sua cabeça deve ser à prova de conselho e pedrada.

Há 26 anos – Março de 1989
*Os Estados Unidos querem saber quantos hectares tem a Amazônia. Devem estar querendo se apossar de algum terreno aqui no Brasil.
*Na votação de Aluísio Alves para o Superior Tribunal Militar, foi encontrada uma bolinha a mais, ao final da contagem dos votos. Fizeram “bolinha” na nomeação do ex-ministro.
*A diferença entre Moisés, da Bíblia, e Moisés, candidato a vereador, é que o profeta subiu o Monte Sinai, e o candidato subiu a Vila da Cohab.

Sosígenes Bittencourt

O HOMEM É ESCRAVO DO BOM TRATAMENTO

Em Recife, na avenida Domingos Ferreira, minha tia Ricardina ia sendo vítima de um assalto. Eram 3 pivetes, um maiorzinho e dois menores, queriam-lhe os pertences. E, aí, minha tia não podia se desfazer dos bens, pelo valor sentimental que os envolvia.

– Olhe, meu filho, esse anel é um presente de minha irmã que faleceu, eu não posso lhe dar.

E os meninos insistiam. Mas, minha tia não podia abrir mão dos seus objetos, persistindo nas explicações de caráter sentimental.

– Olhe, meu filho, esse relógio é um presente do meu filho que faleceu, eu não posso me desfazer dele.

Até que chegou o momento mais sensível do diálogo, que abrandou o menino. Ela passou a mão sobre seu cabelo pixaim e perguntou: – Se você tivesse um presente dado por sua mãe, você queria que alguém levasse?

O menino baixou a cabeça e chorou. O homem é escravo do bom tratamento.

Sosígenes Bittencourt

SOLIDÕES

Uma mulher: – Professor, eu estou pensando em passar um tempo sozinha.
Eu: – Posso saber o motivo, madame?
A mulher: – Depois da última decepção que eu tive, eu pretendo passar dois anos sem querer ninguém.
Eu: – Coincidência. Eu também estou pensando em passar uns dois anos na solidão.
A mulher: – Eu sempre me senti solitária.
Eu: – Se você está solitária, eu estou namorando a solidão.
A mulher: – É como se a gente não valesse nada.
Eu: – Façamos o seguinte: vamos passar dois anos na solidão, eu e você? Ninguém bole com ninguém.
A mulher: – Mas, isso não vai dar certo, professor. Eu sou muito fácil de gostar.
Eu: – Talvez, aconteça o que dizia o escritor alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926): Amor são duas solidões que se protegem.
Sosígenes Bittencourt

Ser Feliz

Há pessoas que trabalham para ser feliz no final de semana. Isso não funciona. Eventualmente, você pode ter um final de semana totalmente fora de suas perspectivas. Quer dizer, você precisa ser feliz hoje, não importa que dia ou que horas são. Portanto, é importante anotar que lidamos com o imprevisível. Lá na Bíblia está o conselho: “No mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo.”

Ana Maria Braga teve uma paixão avassaladora que quase destrói sua vida. Mas, aprendeu uma lição que a levou à sequinte conclusão: “Aprendi, à custa de muito sofrimento, que a gente não pode colocar a felicidade na mão dos outros.”

O filósofo grego Epicuro de Samos afirmou que “O essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima, e desta somos nós os senhores.” Você é quem confecciona sua felicidade.

O escritor e humorista Millôr Fernandes revelou: “A vida pode me fazer desgraçado, não infeliz.” A milenar filosofia Tantra ensina o seguinte: “Quando perder, não perca a lição.”

Há quem pense que a Eternidade é depois da morte. Ora, se a Eternidade é Eterna, ela sempre foi e sempre será. Então, a Eternidade é agora, ela é feita de “agoras”. Portanto, nós estamos na Eternidade. Compreende?

Sosígenes Bittencourt

SINFONIA INACABADA

A mulher é a única Faculdade que não consigo concluir. É uma sinfonia inacabada. Há sempre um “senão”, uma “vírgula” etecetera. É um doce mistério, uma graça. É como se enlouquecesse sem perder o juízo, um cego cuja proa visionária vislumbrasse a luz. Por isso, me entrego ao que sei, e o resto, entrego a Deus.

Sosígenes Bittencourt

A paz do mundo

Eu tenho mania de pensar que a paz do mundo está no coração. Não há paz no mundo porque procura-se onde não está? Nas coisas mudas, naquilo que está do lado de fora. Nas coisas sem vida, meramente coisas. Por que teima, o homem, em procurar a paz lá onde não está?

Eu penso que a paz não será fundada por algum herói, nem por um regime político, nem pela ciência, a paz só será celebrada quando for extraída do coração.

Se tudo que pensamos repercute no coração, o coração é uma espécie de espelho daquilo que pensamos. Logo, é preciso entender o que faz bem ao coração, explorar o que é saudável ao coração. Isto será bom para o mundo.

Eu tenho mania de pensar que a paz do mundo está no coração.

Sosígenes Bittencourt