Novas reflexões acadêmicas sobre o lusotropicalismo de Gilberto Freyre – por Marcus Prado.

Gilberto Freyre (1900-1987), “o mais intensamente brasileiro dos nossos escritores”, no dizer de Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), o mais traduzido em nosso idioma no âmbito da ciência e dos estudos sociais, autor de uma obra iniciada com “Casa Grande & Senzala” (1933), mais do que científica, que alarga os limites da Nação, continua despertando nos meios não só acadêmicos, dentro e fora do Brasil, uma intensa curiosidade intelectual.

O sociólogo tem sido debatido, elogiado, criticado por autores que pesquisam, em profundidade, a sua obra e suas ideias, que vão desde a questão teórica à metodológica. Chegou a ser acusado de comunista, mas também de anarquista, “um anarquista no bom sentido”, reacionário e conservador. Mas nunca deixou de ser “singular e plural”.

Resenhas e artigos sobre a trajetória intelectual de Freyre, ensaios acadêmicos e teses universitárias não param de ampliar a sua bibliografia, em quantidade, qualidade e prospecção de ideias e descobertas, como foi o caso recente do livro “Escrita histórica e geopolítica da raça – A recepção de Gilberto Freyre na França”, da pesquisadora pernambucana Cibele Barbosa (Editora Global). Nota-se, de imediato, nesse livro, originariamente tese de doutorado (Universidade Paris IV-Sorbonne), o domínio da escrita científica, o poder de exegese a partir de diferentes perspectivas, sem se deixar encapsular por concessões, modismos metodológicos ou por correntes teóricas insubsistentes. Um caso raro entre os cientistas de sua geração brasileira na historiografia.

O livro trata do “papel civilizador do negro”, da recepção e relação entre a obra de Freyre e o contexto pós-guerra na França, no cenário de descolonização dos continentes da África e Ásia. Aborda questões culturais, políticas, intelectuais e de raça para entender a recepção de CG&S entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1950.

Cibele contribui com instigantes análises e ampla documentação para a questão do lusotropicalismo de Freyre. Alonga-se sobre o que foi visto, antes dela, por pesquisadores altamente qualificados, como o professor da USP, João Medina (1939-) e por Baltazar Lopes (1907-1989), sobre um Freyre “contraditório”. Como é o caso do livro polêmico: “Cabo Verde visto por Gilberto Freyre”, visto por Lopes, por demonstrar, segundo ele, “certa dificuldade em não oferecer ao regime salazarista a mesma contundência critica dedicada ao Estado Novo de Getúlio Vargas”. Uma das fontes citadas pela autora é o polêmico “Gilberto Freyre e a intelligentsia salazarista em defesa do Império Colonial Português (1951 – 1974)”, do erudito professor João Alberto da Costa Pinto (1950-). A proposta de Costa Pinto é analisar o percurso de Gilberto Freyre junto à “intelligentsia” salazarista, a partir de 1951, momento das redefinições estatutárias da administração colonial feitas por Salazar. Junto a essas práticas governamentais, analisa também como o modelo teórico freyriano – o lusotropicalismo – “foi apropriado como peça fundamental para que a justificativa ideológico-institucional em prol da manutenção do Império Colonial”. (O primeiro império global da história, sendo considerado o mais antigo dos impérios coloniais europeus modernos, abrangendo quase seis séculos de existência, a partir da Conquista de Ceuta, em 1415, até à devolução da soberania sobre Macau à China). Costa Pinto, citado por Cibele, nega veementemente o mito de Portugal como lugar livre de racismo, pluricontinental e multirracial por vocação. Eduardo Lourenço (1823-2020), professor da Sorbonne, o maior vulto da cultura portuguesa do seu tempo, herdeiro de Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e não também, um cético, leitor de Husserl (1859-1938), Kierkegaard (1813-1855), Sartre (1905-1980), Kafka (1883-1924) — citado por Cibele, era também um “crítico feroz”.

O livro de Cibele não é perspectivado como uma descrição somente da política colonial portuguesa da época salazarista. “O livro é corajoso”, como disse Anco Marcio no seu lançamento, Alonga-se sobre a “história do Brasil em CG&S; sobre Freyre e os historiadores dos Annalles (A escola dos Annales é um movimento historiográfico do século XX); sobre CG&S e o imaginário exótico na França no pós-guerra, entre outros temas”. Na verdade, a obra de Gilberto Freyre tem permanecido um desafio constante aos leitores, aos comentadores e a vitalidade de seu pensamento se mostra, talvez, o mais moderno entre os clássicos do pensamento social brasileiro e suas questões ganham, ao invés de perderem, em atualidade. Ele sabia defender as bases da sua tese: a mobilidade, a miscibilidade e a aclimatabilidade do português.

O elogio, rebeldia e o pensar, novos leitores, novos críticos, continuam em torno do “Solitário de Apipucos”. Ele adorava isso. Fazia parte da sua genialidade. O livro de Cibele foi premiado no 1° Concurso Internacional de Ensaios, certame promovido pela Fundação Gilberto Freyre e pela Global Editora. A autora é pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Marcus Prado – Jornalista. 

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