A casa de Manuel Bandeira na Rua do Curvelo (RJ) – por Marcus Prado.

Vem do governo alemão um exemplo raro de tributo à memória de um grande escritor. O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, (1956-) assumiu o compromisso de adquirir, para fins culturais, as casas onde o Nobel Thomas Mann havia morado, na Europa e nos EUA, e assim o fez e cumpriu a intenção. TM é autor de obras que hoje fazem parte do cânone da literatura universal, como os romances A Montanha Mágica e Os Buddenbrook e as novelas Morte em Veneza e Tonio Kröger. Até o casarão da mãe do escritor, a brasileira Julia Mann (1851-1923), em Paraty (Rio de Janeiro), fazia parte cimeira do projeto, mas a transação, infelizmente, não foi aceita por seu atual proprietário, o navegador Amyr Klink. (Ele estava fora do Brasil quando estive em Paraty para uma entrevista sobre o assunto, havia deixado o irmão, que me recebeu num café da manhã, enfatizando a intenção do Amyr não se desfazer da casa).

Escrevo para dizer e muito a lamentar que a casa da Rua do Curvelo, 53, bairro de Santa Teresa, do poeta pernambucano Manuel Bandeira, onde ele viveu os anos mais difíceis e paradoxalmente criativos de sua vida, foi demolida. Ali, ele viveu modestamente durante quase 15 anos, pobre, doente, só, sem emprego, por conta de um montepio deixado por seu pai, algo como um salário mínimo na época.

No artigo “O diário de Gilberto Freyre”, Antônio Carlos Villaça conta que Gilberto Freyre, quando em viagem ao Rio, em 1926, “foi visitar Manuel Bandeira na Rua do Curvelo, 51”, (…) “lindo lugar, mas casa de pobre”. Nos breves cômodos do poeta, era num quarto que recebia as visitas. Apenas uma janela servia como mediação entre o espaço interno e o espaço externo da rua. A vida como um rio que passava e poderia ser vista da janela, sob a proteção das paredes da casa. Uma certa paisagem construída de forma subjetiva por ele, realizada por meio de um sentimento que só a poesia sabe dizer. Era com o sotaque das suas origens que inventava o seu miradouro. Tenho para mim que nenhum poeta de nosso idioma como esse pernambucano teria visto de uma simples janela as coisas, os seres, o panorama da existência, o mundo, as alegrias e as dores, a poética do cotidiano e as coisas efêmeras, a paisagem construída pela memória, que convém aos momentos raros da vida.

Arthur Miller (1915-2005) teve a sua “ponte” para ver o mundo. Para Manuel Bandeira bastou uma janela, sobre a qual, recentemente, uma máquina de demolição por implosão reduziu a cinzas. Tudo na hora durou um instante, “rugiu como um furacão”, como no seu poema As Cinzas das Horas (1917).

Foi nessa casa onde ele, morando apenas de um quarto, (o aluguel era sublocado) sob impacto de imensa nostalgia do passado do seu tempo recifense distante, já tuberculoso, teve a ideia de fugir de tudo o que lhe atormentava e escreveria um dos seus mais belos poemas de exaltação a essa cidade: “Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora pra Pasárgada”. Ele sempre confessava gostar desse poema, porque via nele “em escorço” toda a sua vida. Porque lhe parecia que nele soubera “transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa” da sua adolescência no Recife. Um poema que faz parte da sua melhor Antologia Poética, de todas as Antologias da melhor literatura brasileira contemporânea. Um poema como o de Carlos Drummond de Andrade (l902-1987), Os Ombros Suportam o Mundo, (Sentimento do Mundo) síntese de sua vida e do seu tempo. Só por esse poema, não bastasse o vulto humano de Manuel Bandeira, essa casa deveria ser tombada, que jamais permitissem a sua demolição.

Faço daqui um apelo ao prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, (que já tem um interessante projeto de restauro de imóveis antigos) para que, em parceria com a Academia Brasileira de Letras, da qual Bandeira foi integrante, mande colocar no que restou da velha casa de Manuel Bandeira, uma placa alusiva ao mais importante morador daquele bairro e que foi um dos mais cariocas, amorosamente cariocas, dos poetas do seu tempo. A casa que foi, também, durante muitos anos, de Rachel de Queiroz.

Marcus Prado – jornalista.

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