O contágio dos novos tempos na ABL há exatos 80 anos. Marcus Prado – Jornalista.

A Academia Brasileira de Letras/ABL, a mais ilustre instituição literária do País, tem por objetivo primordial cumprir plenamente a cláusula pétrea e inamovível estabelecida pelos fundadores, de defesa da língua e da literatura nacional. Eram todos jovens que acreditavam na força transformadora da palavra escrita e da criação literária conciliada com a audácia estética. Estavam todos enfeitiçados pela ideia de reunir o melhor da literatura brasileira.

Tem, ao longo dos seus mais de 100 anos, uma forte presença de pernambucanos na sua galeria de “imortais”, a começar por Joaquim Nabuco (1849-1910), figura humana insubstituível, que foi o grande vulto incentivador e colaborador presencial ao lado de Machado de Assis da ideia de congregar a excelência da literatura do nosso País. Falar de Nabuco na ABL é enaltecer aquele que assumiria a excessiva missão de fundamentar, ao lado de Machado, a sua identidade, a contribuição fecunda e rica da ABL na cultura literária do Brasil. Nabuco já se revelava o acadêmico perfeito, voltado para as praxes da instituição. Era, na verdade, pelo seu carisma, o braço direito daquela corajosa agremiação.O Nabuco do Engenho Massangana, que seria patrono anos depois da maior instituição nordestina de cultura, ligada ao MEC, a Fundação que traz o seu nome, hoje presidida pelo escritor e acadêmico Antônio Campos.

Sabia-se do rigoroso critério de seleção dos eleitos para a Academia, tão bem definido por Afrânio Peixoto, quando recebia Osvaldo Cruz na ABL Há um capítulo de sua história, um tanto ressurgente, que se desconfigura do modelo francês na escolha dos integrantes, mas isso não tem sido visto como uma fenda nos estatutos da instituição. O contágio de um novo tempo da ABL vem de longe. Talvez sob a inspiração da ABL simbolizar, também, a causa da liberdade, da diversidade, como diria professor e historiador Arno Wehling no seu discurso de posse. Começou com Getúlio Vargas, na época o político mais forte do Brasil, prestigiado em todas esferas do poder, eleito para a ABL há exatos 80 anos no mês de novembro.

Meu artigo nada tem de analogia da ABL dos nossos dias com a instituição de estilo eloquente e seletivo do passado, onde se afinava a nossa língua e nossos instrumentos de sentir. Não me apresento para julgar critérios de escolhas, sei que os valores da inteligência e da cultura são multiformes, a experiência humana do ser-no-mundo em diversos aspectos tem ciclos de continuidades e descontinuidades. Vai bem longe o tempo em que Platão escreveu no pórtico da sua Academia a condição de que só daria lugar a bem poucos: “Aqui não entra quem não for geômetra”. Pretendo somente lembrar um episódio de oito décadas que exteriormente repercutiu nos meios acadêmicos, fora da ABL e na melhor mídia.

Como se deu: Para a glória de usar o fardão mais disputado do Brasil entre o sim (e os não) da vida intelectual, o gaúcho presidente da República apresentou como cartão-de-visita os 11 volumes que reúnem a sua trajetória como político. (O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para ocupar a cadeira deixada pelo jornalista João de Scantimburgo (1915-2013), a Prefeitura do Rio de Janeiro desembolsou mais R$ 70 mil para custear o fardão). Ali estão seus discursos mais importantes, desde a campanha presidencial de 1929, fruto da propaganda do Estado Novo. Uma vasta gama de documentos oficiais em que se terá reunido o pensamento autoritário de Vargas, um discurso ultraconservador, eis o perfil intelectual do ocupante da cadeira que teve como patrono Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810). Páginas e mais páginas de retórica do saneamento, do equilíbrio financeiro e das finanças sadias são temas da “obra” de Getúlio, ao contrário do que se daria com os relatórios de gestão do prefeito e depois grande escritor Graciliano Ramos (1892-1953).

Os relatórios enviados ao governador de Alagoas (1929, 1930), já na época, chamaram a atenção da mídia não somente pela qualidade literária (pois o Prefeito não se utilizou da formalidade que tais documentos normalmente carregam, e sim, de uma construção linguística própria dos grandes escritores), mas pela sua excelência na administração da cidade. Getúlio era baixinho no tamanho, mas vaidoso ao extremo. Junto dele estava sempre o Gregório Fortunato (1900-1962) o chefe da guarda pessoal, também conhecido como “Anjo Negro”, a lhe pentear os cabelos nas cerimônias públicas. (Ficou famosa uma foto dos dois na revista O Cruzeiro). Faltava-lhe o fardão, não a glória literária. A quem se deve a façanha de Vargas tornar-se candidato único e conquistar, sem pedir voto a ninguém, a cadeira 37 da Academia? Era presidente da ABL o seu amigo, homem forte, de prestígio e confiança na esfera do Governo Federal, o Levi Fernandes Carneiro (1882-1971), Consultor – Geral da República, nomeado por ele, Vargas. Nessa postura, o Levi não mediria esforços para dar prova de amizade e gratidão ao ilustre chefe.

No seu discurso de posse, Vargas faz de imediato uma confissão, deixou a sua primeira “carta-testamento” à posteridade: “Não sou e nunca pretendi ser um escritor de ofício, um cultor das belas-artes (…)”. Nada pôde dizer, no discurso, da sua experiência como escritor e do efeito que o seu livro produziu no público, sequer entre os seus seguidores políticos. Depois dessa confissão, dizem que Vargas jamais foi visto na cadeira 37, que já pertenceu ao poeta Ferreira Gullar (1930-2016).

Por falar em tradição de Pernambuco na ABL, porque foi daqui que ela se agigantou em qualidade no quadro de sócios, quero lembrar o nome de um dos seus benfeitores, o usineiro pernambucano de Vitória de Santo Antão, João Cleofas de Oliveira (1899-1987). Outro pernambucano de Caruaru, Austregésilo de Athayde (1898-1993), presidente da ABL, construiu um patrimônio de imóveis que garante a cada acadêmico um “salário” de R$ 11 mil. Reconheço que a tradição de Pernambuco na ABL poderia ser continuada com todo brilho e qualidade, com nomes, quem sabe, no futuro, como Vamireh Chacon, Cláudio Aguiar, Luzilá Gonsalves, Lourival Holanda, Raimundo Carrero, José Paulo Cavalcanti Filho, João Câmara, Antônio Campos, George Cabral, José Souto Maior Borges, Everardo Maciel, Vera Millet, Juliana Barreto.

Marcus Prado – Jornalista. 

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