CARNAVAL VITORIENSE (RETALHOS DA MEMÓRIA 1) por Lucivânio Jatobá (*)

Quando se aproxima o período momesco, sou tomado, inevitavelmente, por uma insuportável saudade dos carnavais de minha infância e adolescência em Vitória de Santo Antão. E surgem figuras, nessas reminiscências, que nunca consegui esquecer e que nos faziam felizes, com suas irreverências, nos quatro dias de folias.
Tomei coragem e resolvi exumar, como uma catarse, algumas dessas pessoas extraordinárias e certas cenas que vi na remota década de 1960 na cidade de Diogo Braga.
Comecemos por Zé Palito, que era admiradíssimo por meu pai e meus familiares que moravam na Rua Ruy Barbosa, na frente do Cine Braga. O mela-mela , os banhos de farinha de trigo e de água da torneira eram uma fonte de alegria, até para as “vítimas”. Zé Palito e os filhos, meus amigos, dominavam o espaço. Divertia-me muito vendo o espetáculo… , As pessoas ensopadas e ainda totalmente ocultas pela massa branca sobre os cabelos e a face, irreconhecíveis subiam a ladeira, em direção à Praça do Livramento. O Carnaval atingia seu ápice.
De repente, alguém, numa das janelas da casa de Tia Julia, gritava: “Chega, Vaninho!!! Vem ver! Lá vem “Seu Misura”. As gargalhadas eram estrondosas… Aquele homem sério, impenetrável, às vezes, durante o ano, transmutava-se numa metamorfose espantosa, que surpreendia todos os espectadores. Cada ano era uma inesperada novidade. Uma vez saiu de bailarina outra vez de… Depois de… E tome risos na plateia….! Como aquilo tudo me fazia feliz!
Em 1965, em pleno domingo de carnaval, parou um jipe sem capota na frente da minha casa, com um barulho infernal de um “escape livre”…. Dele desceram: o farmacêutico Rochinha, Dr. Zé Leal, o juiz da cidade, Zé Augusto Ferrer e mais um outro cidadão, creio que um maçom …
Emídio! Emídio…! Vem embora , homem, que vamos ao trabalho! ( Creio que foi dr. Zé Leal que fez o convite, aos berros)
Meu pai tinha tido há poucos meses uma ameaça de infarto! Implorei para que não fosse… Chamei seu Rochinha e disse-lhe: Papai, não pode beber, ouviu?
Riram muito quando Rochinha foi enfático: nem se preocupe, ele está entre “médicos”!
Debandaram com meu pai, que seria a “vítima” deles naquele Carnaval. Vítima da bebedeira. O jeep saiu em disparada. Só se ouvia lá longe, para as bandas da Estação Ferroviária, o estridente som do escape livre. Lá na Mariana Amália, soube depois, Zé Leal agarrou-se com um poste, subiu uns degraus nele e começou um discurso “sem pé nem cabeça”, amontoado de irreverências… Logo fez-se um plateia que cresceu rapidamente… Todo mundo surpreso e dando gargalhadas com aquilo… O médico da cidade … Era Carnaval! E tudo podia e valia a pena, até mesmo falar da vida dos outros, após muitas doses de bebida.
Sairam assim, pela cidade, promovendo as situações mais patéticas possíveis. E íam fazendo com que meu pai bebesse, mais e mais, uma mistura de tudo: Crush com Pitu; Rum com mortadela; Pé de galinha com Drurys… Conseguiram que ele também proferisse um “discurso de poste”. O que disse? Nunca soube…

O Jeep marrom claro saiu, no final da tarde daquele domingo de Carnaval , entregando os bêbados de volta às suas famílias. Meu pai chegou carregado. Olhei para seu Rochinha , com muita raiva; ele era o menos bêbado do bando… Apressava o outro carregador de bêbados, dizendo: vamos logo que ainda tem os outros que já estão virando neném! ( Seu Rochinha, uma figura singular, contou depois que tomou naquele dia várias colheres de sopa de azeite de oliva para evitar que o álcool subisse rapidamente à cabeça…)
Meu pai, que adorava Carnaval, passou os dois dias seguintes acabado com a ressaca. Mas brincou naquele domingo de Carnaval como nunca fizera em toda a vida. Sem saber estava se despedindo dela. Foi feliz ao lado de pessoas as quais reverenciava profundamente. Foi irreverente, dançou muito no Sapo, proferiu discursos sem nexos, levou banho pelas ruas da cidade, deve ter contado piadas. Riu muito e sentiu o mundo rodar, a mesma sensação que eu tinha ao girar vezes seguidas no carrossel dos cavalinhos, na Festa do Livramento.. Vivenciou momentos de felicidades que não têm preço. Momentos singulares.
No ano seguinte, voltou à cidade. Estava exilado numa cidade imensa, na qual era um “ninguém”. Não pode mais entrar no Jeep que entregava bêbados no domícilio. Não lhe foi possível rever os amigos, nem trocar umas palavras com seu querido Rochinha, o “quase doutor”. Gostaria de ter ido ao hospital do compadre Zé Leal para pelo menos cumprimentá-lo e falar da saudade que sentia.
Foi levado para o Cemitério São Sebastião. Aguardava-o uma solidão que a todos assombra.

(*) E´vitoriense de coração e professor da UFPE

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