Um morto andando pela cidade.

Amanheço morto na cidade. Tomo conhecimento de que morri logo cedo. Sou um morto muito especial, porque posso negar a minha morte, abrir a porta e sair andando, respirando o ar, rever as ruas, os lugares antigos por onde passei quando criança e que o tempo foi modelando, ora para melhor, ora para pior. Posso perceber, agora, que alguns lugares é que morreram. Caminho com um ar importante pelas ruas, porque posso descrever o que desapareceu. O cheiro do Café São Miguel, as meninas do Colégio Municipal, picolé de mangaba, disco de vinil com o retrato de Carlos Gonzaga, sessões dominicais de cinema, com sabor de ping-pong, Rock Lane a cavalo. Sou um morto que pode contemplar o nojo, a paixão e o tédio dos que me rodeiam e me julgam. Tenho direito a mais um dia, um jantar, telefonar para marcar um encontro. Principalmente, ir ao encontro e praticar, meticulosamente, a arte de dar e receber amor, como na milenar receita de Vatsyayana, o Kama Sutra de todo dia. Sinto-me vaidoso de minha morte – sem esquife, castiçal, lampejo de vela, coro lúgubre de carpideiras e meu derradeiro desfile, horizontal, pela cidade.

Respondo a alguém que me telefona para saber a verdade:

Morrer na boca do povo faz mais sucesso do que morrer de verdade. Não é todo dia que se é um morto andando pela cidade.

Sonho com alguém me perguntando: – Sosígenes, você andou morrendo ?

– Não, ando sem tempo para a morte.

Sosígenes Bittencourt

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