Lembranças do Cofre da Casa Krause – por Marcus Prado.

LEMBRO-ME DE UMA LOJA QUE que deixou para sempre de ser, suas portas há anos fechadas: a M. L. Krause & Cia Joalharia Krause, na Rua Primeiro de Março, Esquina da Rua do Imperador – fundada em 1914. Dela já se ocuparam Paulo Fernando Craveiro, o cronista da cidade mais famoso do seu tempo e o saudoso Rostand Paraiso. Não é da loja e do seu prédio imponente de secular tradição, um marco da arquitetura pernambucana, que deveria ser tombado, que desejo comentar neste artigo. É do seu cofre cheio de joias preciosas de ouro e prata sob a responsabilidade do Luiz Alves Ferreira, gerente da loja, pai do maestro e compositor Nelson Ferreira.

FERVILHAVA DE NOVIDADES vindas das filiais do Rio de Janeiro, Pará e Maranhão, dos países de maior fama e tradição no ramo de joias, principalmente da França e da Alemanha. Era a preferida pela chamada “fina flor” das famílias abastadas recifenses. Por tradição, saído da Krause, o que era ouro, de verdade o seria para sempre. Daí a fama da marca fundada por um caixeiro viajante.

ERA VISITADA POR MUITA gente famosa: usineiros, políticos, senhores e senhoras de engenho, damas nascidas em berço de ouro. Um dos seus clientes famosos era o político paraibano Joao Pessoa. Poucas horas antes de ser assassinado, no Recife, havia marcado encontro na Krause com o amigo, usineiro Caio de Lima Cavalcanti. O visitante comprara uma joia de grife famosa para a filha que morava no Rio de Janeiro.

Roberto Burle Marx era um deles. O filho da pernambucana Cecília Burle, na sua fase de design de joias, quando mostrava, no Recife, ainda jovem, o que desenhava com exclusividade para H. Stein, o mesmo H. Stein que, vindo da Alemanha, fugindo da Guerra, iniciara os seus negócios com as joias feitas pelo também paisagista, que se tornaria o mais importante do século em que viveu. Foi uma dessas joias presenteada pelo governo do Rio de Janeiro à Rainha Elizabeth II, quando de sua passagem pelo Brasil. Nos leilões de arte, as joias de Burle Marx eram disputadas.

O COFRE DA KRAUSE, de fabricação alemã, era o mais antigo e confiável da cidade. O seu peso foi estimado em 2,5 toneladas. O segredo, só ao velho gerente da loja pertencia. Eu sabia, vendo o cofre-museu de perto, que tinha a capacidade de guardar dentro dele vários outros cofrinhos familiares, protegidos em caixas de cedro, (ainda ouço as modinhas vienenses que deles saia, quando abríamos sua tampa de veludo), onde se via antigas cartas de amores desfeitos; outras cartas, sem nome, de despedida do jovem pracinha da FEB com destino à Itália; um vestido de noiva, véus e grinaldas nunca usados; secretas cartas seladas de um jovem padre a uma freira de convento, nada parecidas com as cartas do padre e gênio Pierre Teilhard de Chardin a Leontine Zanta; um pequeno e delicado estojo francês de retoque de maquiagem, para uso quando as palavras nada mais soassem, quando o relógio de parede não mais desse as horas na vastidão do tempo, quando os sonhos fossem quimeras a favor dos ventos, quando o espelho sem folego perdesse o seu reflexo.

VI NESSE COFRE lindas fotos do sol aceso no auge do verão, nos canaviais do engenho Cachoeirinha, de dona Flora de Oliveira Lima, ela que foi casada com o escritor e diplomata Manuel de Oliveira Lima; um exemplar da Odisseia, de Homero, “pai fundador” da literatura e do cânone ocidental, onde em sucessivas passagens o Ouro figura com predominância, ao lado de armas de ferro, diversos tipos de elmos provenientes do Bronze caracterizado pela presença de um suporte metálico, feito de Ouro.

Comoveu-me o gesto simbólico de quem teria deixado sob a guarda do Cofre da Casa Krause esse outro emblemático Ouro, que dura para sempre, não muda de cor com a passagem dos séculos. O que tinha memória, o que tinha esquecimento havia no cofre da Casa Krause. Não exagero ao dizer que vi caixas de perfumes, espelhos, leques e pentes para a festa em louvor à deusa Iemanjá; uma bola de cristal, das que auguravam aventuras e desventuras do amor; fiquei sabendo que, dentro do cofre, havia cipós de madeira, do tipo certo para confecção de banguês, como se nossos engenhos de açúcar não fossem todos de fogo morto; desconfio que, para aprender a amar o mistério, alguém deixou no cofre da Casa Krause, dentro de uma caixa foliada a ouro, um cadeado de prata, fechado, … sem a sua chave; pelo rastro do cheiro que inspirava, havia uma cumbuca cheia de receitas de bolos de leite, torta de chocolate, torta de gelatina que derrete na boca; bolo da cueca virada; bolo de macaxeira ralada; bolo cremoso de coco;

TUDO ISSO, GUARDADO EM SEGREDO, como se fez em caixas herméticas no obelisco de Luxor por doação do Vice-rei do Egito, Mehmet Alçi ao rei da França, Carlos X, hoje instalado na Praça da Concórdia, em Paris; como se fez na abóbada da Catedral de Santa Maria de Toledo. E, para não ir longe, como se fez no obelisco da praça da Matriz, em Vitória de Santo Antão, para assinalar a passagem do século 19: no seu interior foi depositado, entre outros objetos históricos, um exemplar do livro O Delírio do Nada, da escritora vitoriense Martha de Holanda, a primeira poeta e intelectual existencialista, muito antes de Simone de Beauvoir. Cofres antigos, há sempre segredos guardados neles, dependendo das mãos macias que guardam a sua chave.

Marcus Prado – jornalista

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