Clarice Lispector e a Ucrânia – por Marcus Prado.

O que diria a ucraniana mais brasileira do Brasil, Clarice Lispector, se fosse viva, nos seus 102 anos de idade, ao saber que jovens mulheres do seu país estão vivendo nesta hora a mesma tragédia de guerra experimentada pelas mulheres judias do seu tempo, durante a Guerra Civil Russa (1918-1920)? Quando sua mãe, Mania Krimgold Lispector, morava na Ucrânia, foi estuprada por soldados russos. Eles chegavam, invadiam as casas, destruíam tudo, estupravam e matavam. Estupradores sempre deixaram rastro nas páginas negras da história. No Musée de l’Homme, de Paris, eu vi vasos gregos do período clássico com iconografia de raptos de mulheres, mas os gregos condenavam atitudes como a violência física e sexual contra as mulheres (como nos informa Heródoto). Ao contrário dos soldados do ex-agente da KGB, dono do segundo maior poder de armas destruidoras do mundo.
O que diria essa autora que se considerava brasileira de Pernambuco, mas que nunca negava as suas origens? Qual seria o seu olhar diante das imagens do satélite e do noticiário que dá conta de uma parte da Ucrânia devastada por forças inimigas, sob a ameaça de um pesadelo nuclear? (Isto porque Putim sabe, desde o começo, que, se perder a guerra, perderá a vida).
Clarice nasceu no exílio, com toda família, foi uma refugiada de guerra, não deixou de ter o sangue ucraniano. Além de ser a mais influente escritora de idioma português do seu tempo, Clarice nunca deixou de ser jornalista, sua primeira profissão e uma das cronistas mais lidas na sua fase carioca. Tenho para mim que a jornalista e escritora, criada num ambiente familiar de intenso misticismo, se juntaria nesta hora à alma agônica de meninas e mulheres estupradas, àquelas que perderam seus filhos recentemente, vítimas de ataques de bombas assassinas sobre escolas públicas. Sua obra de ficção está cheia de instigante solidariedade humana, como intérprete dos tempos sombrios, da condição humana à luz das experiências e temores de um mundo pós-Auschwitz, da contemporaneidade. A realidade de ontem é a mesma de hoje, sem nenhum critério moral. (Os termos do Tratado de Limitação de Testes Subterrâneos têm sido uma quimera, uma utopia, caíram no esquecimento). Clarice teria diante do seu olhar que via o inexplicável, (que contrasta com a linha dominante da ficção brasileira) que, apesar de todos os esforços para o desarmamento entre as nações quase nada se conseguiu. Que a guerra continua com a estupidez hedionda dos estupradores, covardes e assassinos. Não sei o que diria a escritora e suas vidências se lhe perguntassem, como a Einstein perguntaram um dia, que armas seriam usadas na eventualidade catastrófica de uma nova guerra mundial. O genial físico (que se tornaria amigo do judeu recifense, o hoje tão esquecido cientista, Mário Shenberg) respondeu que não fazia ideia; mas que numa quarta guerra mundial as únicas armas seriam machados de pedra. Clarice nunca sentiu saudade da Ucrânia, de onde saíra com poucos meses de vida, nunca disse uma só palavra no idioma russo, “(…) que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças”, mas a Ucrânia dos seus pais e de suas irmãs, esta Ucrânia de hoje, como parte da humanidade, estaria no foco de sua alma solidária, com imenso sentido humano, sobretudo da cronista, ela que foi uma das 5 melhores do seu tempo, que tanto falava da experiência do amor ao próximo e repudiava as coisas absurdas que ultrapassam a nossa compreensão. Não vai demorar, renovado, por iniciativa da Fundação Joaquim Nabuco, sob a inspiração do presidente Antônio Campos, o sobrado recifense de Clarice, que será um centro cultural onde a menina que amava os livros e os enigmas das palavras voltará como o pássaro ao seu ninho.

Marcus Prado – Jornalista

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