Fim de Semana Cultural:
NO AUGE DA MINHA DOR (Conto)
Por Rosângela Martins

Foto ilustrativa - autor desconhecido

O vento começou a sacudir janelas e a espantar paredes. Um vaso, presente de uma velha tia, fez-se em pedaços. Antes que os estragos aumentassem, fechei as janelas de cortinas curvadas, como bandeiras abandonadas à sorte e ao vento.

No chão, cacos dos desenhos de uma porcelana antiga pediam-me atenção. Enquanto cuidava silenciosamente do destruído, ELE permanecia estendido no sofá da sala como um lençol recém retirado do varal. Foi confortável aproximar-me DELE.

A chuva caiu fazendo-me voltar aos tempos alegres. Conhecemo-nos desde crianças e nunca brigamos. Foi amor à primeira vista. Até o momento, estávamos sendo muito felizes.
ELE, agora, mal falava. Não precisávamos de palavras para compreendermos um ao outro. Apenas me olhava com seus olhos ultimamente cansados e cheios d’agua. Era da doença que tinha tomado conta do seu corpo. “É só um resfriado que logo logo vai embora”, dizia-lhe tentando acalmá-lo com minhas palavras de consolo.

ELE tossiu juntamente com um relâmpado que despontou lá fora, parecendo uma faísca saída do estalar de duas poderosas espadas, lutando pela vida. Senti medo, pensando que a hora tinha chegado. Senti um nó na garganta e uma lágrima foi rejeitada por meus olhos, descendo pela minha face pálida de menina abandonada no mundo. Depois outra, outra e mais outra, até que o nó se desfez e a cachoeira parou de jorrar. Lá fora, a chuva continuava.

Por um momento, achei que alguém bateu à porta. Ao abrí-la, o vento entrou pela casa varrendo a tranquilidade e ELE tossiu outra vez. Desta vez, mais forte. Parecia a morte em cobrança. Fechei desesperadamente a porta e a tosse parou. Imaginava estar trancando lá fora a inimiga e não deixaria que ela entrasse e me arrancasse o que tinha de mais precioso na vida.

ELE  dormiu. Eu, não. Fiquei pensando em como Deus estava sendo injusto comigo. ELE não podia morrer.

O dia estava anoitecendo. A chuva havia parado e já se podia ouvir o canto longínquo de pássaros que se preparavam para fechar a tarde. Aqui dentro, ELE ainda dormia. Lá fora, ela esperava, impiedosa, sem ao menos levar em consideração a nossa vida de casal jovem feliz e apaixonado. Mas, apesar de relutar tanto, eu sentia que a hora estava próxima.

A respiração DELE aumentou, até que abriu os olhos. Beijei, então, seus lábios com tanta  ternura, implorando por um milagre. Desconhecendo a realidade, aceitou-o. Com um leve sorriso, seus olhos fecharam-se para que nunca mais eu os fosse ver brilhar.

Levantei e abri  a porta. Ela finalmente entrou, o levando de mim.

Minha dor aumentava cada vez mais, como se uma faca estivesse cravada em meu peito. A vida fora curta mas cheia de alegrias.

Veio-me outra vez o nó, mas não deixei que este se apertasse. Expeli com rancor todo o meu sofrimento. Tinha que deixá-lo, tinha que ter coragem. Quando ELE acordasse, se acordasse, ELE  iria entender que a sua hora final chegara.

Já podia imaginar-me à frente de um caixão: o vento arrastando as folhas secas e soltas pelo chão que, depois do enterro, seriam suas únicas companheiras. Insuportável era vê-lo morto. Nunca a vulnerabilidade da vida passou pela minha cabeça.

Em mim, os sentimentos se confundem e a realidade ainda não se definiu em forma ou extensão facilmente compreensíveis.

Não vivo sem ELE. Morro com ELE.

Rosângela Martins é escritora e poetisa.

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