Os alimentos do divino na pesquisa de Maria Lecticia – por Marcus Prado.

O livro da escritora pernambucana Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, A  Mesa de Deus: os alimentos da Bíblia (Editora Record/Edição Especial da FacForma), ostenta uma esfera de hipnótico fascínio como leitura e pesquisa histórica: o desafio de reunir, com notória pertinência, fluência e erudição, tudo o que se acha contido na Bíblia sobre os principais ingredientes e alimentos, cheios de símbolos, dos tempos narrados no Livro dos Livros.

Nele, desfilam as árvores, os cereais, as carnes, os frutos, os temperos, o azeite, o mel, o leite, as plantas, a preparação dos alimentos, os rituais e sua importância para o povo de Deus. O pão era alimento básico que se tornou sinônimo da própria vida. Frutas e peixes eram pratos favoritos da dieta. Muito curiosas no livro da senhora Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti as páginas dedicadas aos banquetes da Bíblia. Algumas narrativas, sendo adaptadas, sugerem um tema de filme, os banquetes, como os que se mostram na cantata cênica Carmina Burana, composta por Carl Orff em 1935-1936 e estreada em 8 de junho de 1937 na Alte Oper de Frankfurt, sob direção de Bertil Wetzelsberger. Jamais uma mesa foi tão opulenta de comidas, vinhos, peças de ouro e prata, como a que serviu de cenário único para essa peça teatral.  Na mesma linha temática: A Ceia dos Cardeais, peça teatral de Júlio Dantas, levada à cena pelo saudoso Teatro de Amadores de Pernambuco, com Reinaldo Oliveira, Renato Phaelante, Enéas Alvares, Adhemar de Oliveira Sobrinho.

O livro A Mesa de Deus: os alimentos da Bíblia, segundo Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, nasceu de uma conversa com o cardeal Dom José Tolentino Mendonça, na Casa de Chá Santa Isabel, em Lisboa, acerca da importância da alimentação para o povo de Deus, sobre os hábitos alimentares dos hebreus nos diversos momentos de sua trajetória, reconhecendo que a Bíblia está repleta de refeições cotidianas. Abro uma breve cortina: A Casa de Chá de Santa Isabel, citada pela autora, é detentora de uma longa tradição lisboeta. Localizada no Largo do Rato, na Rua de São Bento nº 700, perto dali, morava a fadista Amália Rodrigues, tem sido um local de convívio para as pessoas há cerca de 70 anos, imperdível para quem aprecia um ambiente de seleto e requintado gosto, com a qualidade, segundo vi de perto, certa vez, de não constar do trade turístico e gastronômico da cidade. Onde talvez melhor se come na Europa.

As conversas da senhora Maria Lectícia com o cardeal Tolentino, tudo indica, foram enriquecedoras ao longo dos anos de pesquisas, até à sua erudita e consagradora Introdução ao livro. “A torrente de passagens bíblicas  referentes aos alimentos e à mesa que Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, com mão informada, com mão pacientíssima e brilhante (…) não é, portanto, uma marginalia destinada a ser etiquetada sob a categoria de “curiosidades ociosas”.  Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual. O título escolhido para esta obra está certo. E o livro dá a provar do que promete. Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti oferece-nos aqui uma daquelas experiências que não vamos querer esquecer”. (Cardeal Dom José  Tolentino Mendonça). Para quem não sabe, o apresentador, além de   cardeal, é famoso poeta, ensaísta e teólogo português. Atualmente é prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana. Ganhador de mais de 10 prêmios por sua obra literária elogiada pela crítica de seu país, foi vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa até à sua nomeação episcopal em junho de 2018 e, na mesma universidade, atuou como diretor da Faculdade de Teologia. É também professor visitante da Universidade Católica de Pernambuco.

O resultado desse livro, se atentarmos para a sua construção orgânica, também para a sua nova edição primorosamente gráfica, é uma obra que se parece com um projeto de engenharia, feito por quem delineia os traços de uma ponte para ficar suspensa no ar, sem nada faltar nas vigas da sua escrita, do começo ao fim. O resultado, digo ainda, foi uma narrativa cuidadosa e vigilante, a desafiar os rigores de um texto que não comporta concessão ao brilho fácil do intolerante e do lugar-comum. Há sopros de aromas soltos no ar, de arbustos e árvores, de cálamos, de hortelã, de mirra, de incenso, de mostarda, de arruda, quando não de romãzeira, cipreste, salgueiro, tamareira, videira. Cada um com breves referências sobre os símbolos, que ainda existem na liturgia da Igreja, na figuração do sublime. Os símbolos elencados nesse livro e as pluralidades de dizeres que eles encerram. A obra, então, atinge o seu ponto de intensidade culminante, como pesquisa e concepção.

Esse livro vem ampliar a perspectiva bibliográfica de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti nos temas de Gastronomia em que ela tem se mostrado mestra e erudita, desde o começo, contínuo e imparável, da sua vida de escritora e acadêmica da Academia Pernambucana de Letras.

Marcus Prado – jornalista

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