Fim de Semana Cultural:
Os Medos da Paixão (conto) – Por Valdinete Moura

Classificação: texto de ficção não indicado para menores de 16 anos.

Não era assim que queria. Não assim: estômago embrulhado, boca amargando, cabeça rodando. Não assim. Bêbada. Difícil acreditar. Sempre tão certinha, comportada e agora, bêbada. Bêbada como uma qualquer. Qualquer Fulana dos becos e ruas da lama que existem por aí. Sou bêbada chique, conseqüência do uísque escocês do mais puro, moro em um apartamento luxuoso em Copacabana. Nem por isso menos bêbada, menos enjoada… Enjoada de mim, da vida, do mundo… Esse mundo é uma porra! Pronto, disse. Uma bêbada é o que você é e, além de bêbada, pornográfica. Não se envergonha? Jamais pensei que um dia, minha filha… Meu Deus, só falta me chamar de puta. Não, mamãe, não diga assim… Se soubesse, chamaria, talvez até não quisesse mais me ver. Não fale assim, mamãe, eu estou sofrendo. A verdade é que estou bêbada. Nunca fiquei assim antes… só uma pequena dose, socialmente. Pro diabo com o social, estou bêbada e sozinha, ninguém viu quando roubei a garrafa. Quando meu irmão descobrir… na sua festa. Ora, que se fodam todos: meu irmão, minha mãe, todo mundo, o mundo também. E eu de quebra. Que está acontecendo comigo? Nunca usei essas palavras. Mentirosa! Usar, usou, só não falou. Se peca por pensamentos, palavras e ações. Se pensou, pecou. Porra para vocês também. Todos os que enfiaram essas coisas na minha cabeça. Não quero chorar; não, meu Deus, que papel ridículo estou fazendo: bêbada e toda desalinhada. A roupa nova que custou os olhos da cara naquela butique nova, como é mesmo que se chama? A tal butique? Sei lá, qualquer uma chique da Zona Sul. Que se dana a tal butique junto com todo o bairro. O Rio de Janeiro todo. A maquiagem deve estar toda borrada. Não quero… não quero chorar, ficar horrível: bêbada… chorona… bobona… meu Deus, que coisa feia. Feia, coisa nenhuma, feio é o que fiz. Como fui fazer aquilo? Deve-se fugir da ocasião de pecado. Como, se o pecado é tão atraente. O diabo toma formas atraentes para tentar. Para o inferno com o demônio… não acredito em demônio, nem em inferno… inferno é agora… o meu. Merda, estou chorando, estou horrível, não quero, felizmente ninguém me vê. Como pode ver, se fugi, enganei todo mundo, queria ficar só, roubei o uísque. Mentira, não quero ficar só, quero colo, alguém para me consolar, quero meu irmão, ele pode. Quero esquecer, foi tão bom e durou pouco, tão pouco… parecia tanto, tão bom, divino. Por que digo assim? Não devia. É sacrilégio usar o nome de Deus em vão. Ainda mais se tratando de coisa assim. Foi divino, sim. Divino ser puta?  Assim que me chamava, sua putinha. Que vergonha, meu Deus. Era tão bom, tão bonito, ficava tão feliz! Menos quando me chamava de putinha, mesmo assim, com carinho, fiquei não sei como, humilhada, ofendida, não sei. Não disse nada, sentia vergonha. Igual às mulheres da rua da Lama  que passavam em frente à casa de vovó, lá no interior. Mamãe não falava com elas, nem vovó, nem as senhoras de respeito, se falavam, usavam um tom de superioridade para mostrar o lugar de cada uma. E agora eu me sinto tão mal, tonta. Tonta e chorando, não consigo parar de chorar. Deus, queria gritar, preciso. Queria morrer. Aí, acabava tudo. Mamãe não ia saber de nada e o povo ia dizer coitadinha! Morreu tão nova! Bebeu demais, não tinha costume. Ninguém, ia ficar sabendo de nada. Ninguém sabe; só eu e ele. Ela, será que sabe? Sabe nada! Ele não ia dizer a mulher que ele… que nós… ai, que vergonha! Vergonha, você nesse estado. Não conhece seu lugar? Uma moça de família, mamãe, não mudou nada… quer dizer, quase nada. Ai, meu Deus, não quero pensar, não quero lembrar; ele com ela como se não me conhecesse, tão seguro, como se nós não… Não posso esquecer os dois daquele jeito. Tão apaixonados e eu… pensei que ia morrer, cair ali mesmo e ele tão seguro. Não quero lembrar, não quero. Se ao menos eu dormisse antes que alguém chegasse aqui, era como se morresse. Mamãe ia ficar assustada. Que me importa, só me importa eu agora, o resto que se dane, se foda, se qualquer-coisa-de-horroroso, qualquer coisa. Eu quero dormir, esquecer, passar a ressaca. Não quero morrer, ninguém morre disso, tão bom… apesar… sua putinha. Ninguém ficou sabendo, isso passa. E se souber? Merda pra todo mundo, merda pra elite carioca. Bom falar assim. Pensar. Livre. Vou dormir… respiro fundo, isso passa, amanhã é outro dia, respiro fundo, durmo, não estou mais chorando, só com a cabeça doendo… respiro fundo, passa, durmo, respiro… durmo… passa… merda pra…  ZZZZZZZZzzzzzzzzzz…………….

* Conto integrante do livro “Mulheres na Chuva” pela Ilumine Editorial.

** Ilustração de Jack SoulFly, artista vitoriense.


Valdinete Moura
 é escritora e poetisa,
membro da Academia Vitoriense de Letras, Artes e Ciência.

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