No início das pesquisas voltadas para o meu livro Recife e Olinda. (Da imobilidade do instante), inédito, tive a curiosidade de fotografar alguns dos mais antigos quintais das duas cidades, um deles, da residência do artista plástico Luciano Pinheiro e Vera Millet, em Olinda, “nascedouro” do centenário Horto Botânico D’El Rey, no passado, a maior área verde urbana da cidade, o segundo na sua especialidade no mapa do país. Na casa de Luciano, não é só o quintal como prolongamento da casa, é a casa como extensão afetiva do quintal, parte integrante do seu atelier. Não só um lugar cheio de possibilidades inspiradoras de cores da sua pintura. Ali, crescem flores, árvores, pés de fruta, plantas medicinais e forrageiras, além das folhas verdes e dos temperos da horta. O chá da tarde que se toma na casa-atelier do Alto da Sé, vem desse ambiente, onde se ouve rumores de ninhos de pássaros. Eu diria que o quintal de Luciano e Vera nos inspira em saber qual é o sonho e a função de cada um nos dias de hoje, e no amanhã, nesta era de tantos espigões urbanos no amontoado da paisagem urbana. Os quintais como espaços de vida, um pedaço da natureza não contaminada, como vejo o quintal recifense da escritora Luzilá Gonçalves Ferreira, no Poço da Panela. Um lugar cortado pelo rio que banha o bairro, povoado de significados, micromundos.
Ao passar pelo bairro recifense de Casa Amarela, na Estrada do Encanamento, não vi mais a casa, nem o quintal, onde nasceu o mundialmente famoso educador e filósofo Paulo Freire. Foi demolida, nada ficou como lembrança, nem uma parede com o retrato na parede. Não houve quem cuidasse disso no âmbito local de preservação do Patrimônio Histórico. Nesse quintal e no que nele existia de plantas, galhos, árvores e sonhos, o menino pobre foi alfabetizado. Conta-se que sua mãe, Edeltrudes Neves Freire, viúva de um policial militar e pobre, teria feito uso para a alfabetização do filho, apenas, sem poder comprar livros, de pequenos galhos de árvores do local. “À sombra das mangueiras e tendo o chão por quadro negro e gravetos como giz”. Daí, entre outros motivos (vários e surpreendentes), a importância que procuro dar no meu livro aos quintais, que estão caindo em desuso, perdendo o seu espaço, o encantamento, o frescor do verde.
Paulo Freire foi agraciado com cerca de 50 títulos, entre doutorados honoris causa e outras honrarias de universidades e organizações brasileiras e do exterior. É considerado o brasileiro com mais títulos de doutorados honoris causa e é o escritor da terceira obra mais citada em trabalhos de ciências humanas do mundo.
Por possibilitar a alfabetização de jovens e adultos em cerca de 40 horas e com baixos custos, o método desenvolvido por Paulo Freire inspirou o Plano Nacional de Alfabetização, que começou a ser encabeçado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) ainda no governo de João Goulart. Hoje, vejo com simpatia a decisão da dirigente da Fundação Joaquim Nabuco, professora Márcia Ângela Aguiar (anunciada no seu discurso de posse), de resgatar, não só no Recife (Fundaj tem ações culturais de âmbito regional), a memória e a obra desse pernambucano, como filósofo da educação, comprometido com a vida e a existência, defensor da Educação Libertadora, contra a dominação e opressão.
Procuro ver, nos quintais domésticos (tema repleto de leituras sensíveis na voz de grandes poetas e escritores de Pernambuco), não só o que eles representavam. A relação que muitos tiveram com os seus quintais não foi egoísta. Serão vistos como extensão a céu aberto do ambiente doméstico, potencialmente importantes para os que tiveram a sorte de possui-los.
Marcus Prado – jornalista